Milton, minha fé

Beira-rio, 19 de outubro de 2020

Milton, minha fé,

Oi, faz tanto tempo…
Eu não ando muito bem, sabe. Eu fui dormir e quando acordei eu já não sentia cheiro de nada, fui comer um pão e o pão não tinha gosto de nada. Minha cabeça doía forte, parecia que estava carregando o mundo nela e depois febre, me ardia em febre. À noite eu delirava, tinha uns sonhos intranquilos que me cansavam até mais quando desperta. E medo, muito medo de ir dormir e não saber como eu ia amanhecer. A escuridão sempre nos assusta.
Aqui onde eu moro não tem cais. Moro bem longe do mar. Um disco seu está tocando na vitrola. E uma coisa, bem aqui, pesando no meio do peito. Acho que é saudade. Saudade de um lugar onde eu nunca morei. Saudade das Minas Gerais. Está tocando: tudo o que você podia ser. Linda! Linda música. Que saudade desse lugar! Que saudade de Belo Horizonte! Que saudade de viver aí. Como pode existir a saudade de uma coisa que eu nunca vivi? Mas eu sinto. Talvez eu não saiba te explicar.
E mudou de faixa Milton. Quase me levantei para dançar com essa brisa suave da janela. E eu queria ser feliz. Eu queria estar num clube da esquina. Era assim que eu queria me olhar, com aquele olhar de fora. Num clube, numa esquina sentindo um friozinho na perna, com os meus amigos. Fazendo riso de tudo, porque rir assim na esquina é mais fácil. Ah… saudade! Saudade dos que se foram com o tempo e com a distância.
E agora, eu estou chorando. Chorando de saudade. E que bom que eu estou chorando, há tempos que eu precisava chorar. Isso é culpa do vinil! Culpa dessa agulha e desse chiadinho que antecede a canção! Saudade! Saudade! Quero falar: sauuuu-daaaaaa-deeeeeee!!! Quero chorar: saudades.
Estamos todos numa grande travessia. Todos nós. Uma travessia de fé. E aquela estranha mania de ter fé na vida que só é para gente, gente, gente. Tem café servido na mesa de peroba, ela é mais antiga que a casa. E lá se vem Minas no meu peito, com esse cheiro de café torrado. Minas alma do café. Minas do sertão e das veredas. Minas de gente, gente, gente. Milton! Milton! Você sabe mesmo… Você sabe de tudo. Não faz mal. E eu? Eu te deixo guardado, lá em cima, entre os vinis dentre tantas bossas. Lá está você. Também tem Gil e Gal. Pode parecer esquecido. Mas não, não o é. Eu só estou evitando essa dor de te ouvir e ter saudade do que ainda não vivi. Olha só! Tô chorando de novo:

“água-lágrima-salina”

E você é tão belo. É tão divino. A sua voz me liberta, me alivia desse ano tão pesado. Eu preciso chorar. Chorar é preciso. Preciso. Preciso. Estamos em outubro, ainda estamos no meio da travessia. É meio porque do início já passamos em março e o jornal não me deixa esquecer. É notório que eles fazem a contagem dos mortos e infectados todos os dias. E foram tantos, tantos, meu amigo. E de novo sua voz “É preciso ter raça. É preciso ter gana sempre!”
E assim vou me entregando a você, vou me rendendo, me deixando levar e esquecendo o medo. Vou abrindo meu peito. Sonhando, desesperanças e esperanças. Nada a fazer se não esquecer o medo, não é mesmo! Sim! Todo o dia é de viver.
Já vou me despedir, Milton. Até logo.

Assino com amor,

Maria.

Texto por Giuda Sousa

 

 

Biografia da autora:
Eu sou Maria Giudelandia de Sousa. Difícil de me definir. Não gosto de limites, todos me conhecem por Giuda, tenho um sorriso fácil, sou de viajar, gosto dos encontros, gosto de gente, de cerveja e eu amo o mar. Sou muitas dentro de mim, agora: eu sou 36 anos de vida, 11 anos de enfermeira (e alguns meses de 2020 fui enfermeira da UTI Covid a famosa linha de frente). Faço capoeira angola e yoga. Nascida no Piauí em Picos, mas crescida nas terras vermelhas de Ipiranga do Piauí. A poesia está nos meus olhos desde a primeira vez que olhei para o céu (quando criança) e me perguntei: de onde vem a chuva?