Por uma mãe boa o suficiente

Ophelia é uma das personagens secundárias da peça Hamlet, o Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare. Na peça a personagem morre afogada, num provável suicídio. Ela, que amava Hamlet, vê-se privada de seu amor e passa a dar mostras de loucura após a morte do pai, Polônio, que fora assassinado pelo próprio Hamlet. Enquanto a ruptura de Ophelia com a realidade acontece de verdade, Hamlet apenas finge perder o juízo para conseguir saber detalhes acerca da morte do falecido Rei Hamlet, seu pai, e vingá-lo.

 

Ao longo dos tempos o interesse de diversos artistas recaiu sobre Ophelia, mais precisamente sobre sua loucura e morte nas águas. Não há outra personagem de Shakespeare que tenha sido mais retratada na pintura. Talvez a obra mais lembrada desse grupo seja a de Millais, em que o corpo de Ophelia boia nas águas do riacho, com uma expressão serena, os olhos abertos, e rodeada de flores. Representando o tipo feminino da noiva ou amada morta em plena juventude – tipo favorito dos poetas românticos – constituia-se em um modelo melancólico e inatingígel de mulher.

Sem qualquer menção da existência de uma mãe ou figura materna, sequer de uma ama, e completamente circunscrita aos homens que a rodeiam, Ophelia foi criada para agir em conformidade com as exigências do meio, para refletir os desejos dos outros.

 

Ela sofre de uma falta de tradições femininas – não apenas a ausência de mulheres em sua história pessoal, mas também a ausência  de qualquer influência feminina estável e duradoura em sua vida, o que seria tradicionalmente o papel materno. A ausência inexplicada e inexplicável de uma mãe para Ophelia na história torna Polônio, seu pai, o único e altamente precário modelo a seguir.

 

Ophelia não tem identidade própria por conta de seu pai querer moldá-la para seus (de Polônio) propósitos. Ele acredita que os desejos de Ophelia devem ser os mesmos seus. Como Ophelia não conhece nenhuma influência mais significativa além do pai e do irmão, Laertes, acaba por perder a identidade feminina deixando-se moldar pelos desejos da figura masculina.

 

Na primeira aparição de Ophelia em Hamlet, Laertes a acompanha e a aconselha em relação ao relacionamento com Hamlet. Desde o início, Laertes e Polônio tratam a vida particular e amorosa de Ophelia como se fosse um assunto de negócios familiares. Ambos acreditam ser incumbência sua (deles) dizer a Ophelia como a mesma deve se comportar.

Na ausência de Laertes, Polônio assume a tarefa de controlar o relacionamento de Ophelia com Hamlet, dizendo à filha que a mesma não conhece a si mesma, insultando sua capacidade de compreender o que se passa e também revelando sua possessividade e sua preocupação de que ela sirva a seus propósitos gananciosos.

 

O principal interesse de Polônio em relação a Ophelia é o de que a mesma aja de acordo com o padrão social, mantendo as aparências, pois no entendimento do pai o comportamento da filha é resultado direto de seu sucesso como oficial público e como progenitor.

 

Shakespeare propositadamente mostra Ophelia como inferior às personagens masculinas, particularmente Polônio e Laertes. Ela é tão dependente desse relacionamento que, fora dele, não sabe pensar ou agir por conta própria.

 

Ophelia não tem um propósito por si só na historia; ela é o joguete de Polônio, a irmã casta de Laerte e a amante de Hamlet. Quando essas influências masculinas desaparecem e essas descrições não se aplicam mais a ela, Ophelia perde a identidade e enlouquece.

 

Paradoxalmente, é na loucura que Ophelia se liberta. O suicídio de Ophelia é sua primeira e última “escolha autônoma”. Enquanto a noção mórbida de que o suicídio se torna a única rota possível para autonomia nos golpeia no estômago, pensamos na coragem de Shakespeare de mostrar o mal que se pode fazer a uma mulher quando se lhe rouba todas as referências femininas. A maior injustiça que se pode cometer com uma menina é negar-lhe uma boa mãe.

Texto por Luciana Lhullier

Imagem: John Everett Millais , Ophelia